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domingo, 4 de maio de 2014

História e ficção em Memorial


 Imagem da peça Memorial do Convento de José Saramago, com adaptação dramatúrgica de Filomena Oliveira e Miguel Real
 
MEMORIAL DO CONVENTO, José Saramago

AÇÃO

          A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas narrativas simultâneas: uma de carácter histórico e outra ficcionada.

          A acção principal é a edificação do convento de Mafra – desejo e promessa de D. João V e a acção secundária é a história de amor entre Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis; a construção da passarola (sonho de Bartolomeu de Gusmão).

          Na acção principal encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas de acção que se articulam com a primeira.

1º linha de acção
A do rei – D. João V
Abrange todas as personagens da família real e relaciona-se com a segunda linha de acção, uma vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do convento. Esta linha tem como espaço principal a corte e, depois, o convento, na altura da sua inauguração, no dia do aniversário do rei.
2º linha de acção
A dos construtores do convento
Esta é a linha da acção principal da história, a par da quarta – a que respeita à construção da passarola. Esta segunda linha de acção vai ganhando relevo e une a primeira à terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício dos homens, aqui representados por Baltasar e Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se aqui os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também as vencem.
3º linha de acção
A de Baltasar e Blimunda
Nesta linha relata-se uma história de amor e o modo de vida dos portugueses. Baltasar e Blimunda são os construtores da passarola; Baltasar é também, depois, construtor do convento, constituindo-se como paradigma da força que faz mover Portugal – a do povo.
4º linha de acção
A de Bartolomeu Lourenço
Relaciona-se com o sonho e o desejo de construir uma máquina voadora. Articula-se com a primeira e segunda linhas de acção, porque o padre é mediador entre a corte e o povo. Também se enquadra na terceira linha, dado que a construção da passarola resulta da força das vontades que Blimunda tem de recolher para que a passarola voe.


          Verifica-se a existência de um plano ficcional que se cruza com a História, uma vez que a construção da passarola, evento a que a História se refere, acaba por ser ficcionada quando se afirma que se moverá pela força das “vontades” que Blimunda recolhe.

          A construção da passarola é o fio condutor de toda a narrativa pois consegue-se observar quase todos os passos, e até partilhar do entusiasmo das personagens, enquanto que da construção do convento só se sabe as fases da construção.

Parece, até, que só a partir do décimo sétimo capítulo é que a passarola cede lugar ao convento. Na realidade, é a construção da máquina que conduz a narrativa e é ela que materializa o sonho dos seus construtores e lhes vai permitir a fuga de um mundo dominado pela injustiça e pela prepotência.

          As sequências narrativas, que fazem parte da acção, podem surgir articuladas de três maneiras diferentes:

 à Encadeamento: por exemplo, o desenrolar da relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, a partir do momento em que se conhecem no auto-de-fé, onde a mãe de Blimunda é condenada, até ao reencontro do casal no final da acção, na altura em que Baltasar está a ser queimado na fogueira da Inquisição.

à Encaixe: por exemplo, as histórias de vida que Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-tempo e Baltasar Mateus contam uns aos outros (Cap. XVIII), quando estes se encontram longe dos seus lares a trabalhar na construção do convento.

à Alternância: por exemplo, a história de Manuel Milho sobre uma rainha e um ermitão (Cap. XIX) é contada por partes, à noite, dando lugar à narração de outros eventos.


ESPAÇO

Espaço físico (espaço real, onde os acontecimentos ocorrem, confere verosimilhança à história narrada):

 à Espaço geográfico – Lisboa e Mafra são os espaços fulcrais, até porque é aqui que se movimentam as personagens principais. Dentro destes espaços, destacam-se, nomeadamente:
  • o Terreiro do Paço (local que retrata a vida na corte),
  • o Rossio (onde se realiza, por exemplo, os autos-de-fé),
  • S. Sebastião da Pedreira (localidade situada nos arredores de Lisboa, onde decorre a construção da “passarola”, na quinta do duque de Aveiro),
  • a “ilha da Madeira” (vale onde os trabalhadores do convento se alojam).

Faz-se ainda referência :
  • a Évora, Montemor, Pegões, Aldegalega (locais por onde Baltasar passa, depois da guerra, no seu percurso até chegar a Lisboa);
  • à serra do Barregudo, ao Monte Junto, ao Monte Achique, a Pinheiro de Loures, a Pêro Pinheiro (onde os homens vão buscar a gigantesca pedra para o convento), a Cheleiros, a Torres Vedras, Leiria,
  • à região do Algarve, Alentejo e Entre-Douro-e-Minho, etc.

à Espaço interior – Palácio Real (Lisboa), a albegoaria da quinta do duque de Aveiro (arredores de Lisboa), a casa dos pais de Baltasar (Mafra) …

à Espaço exterior – ruas/praças, o Terreiro do Paço, o Rossio, Remolares, S. Roque, o morro das Taipas, Valverde, o vale da “ilha da Madeira”…


Espaço social (ambiente social vivido pelas personagens): MAFRA e LISBOA

Ø  A vida na corte, com a apresentação do séquito real, do vestuário das personagens, das vénias protocolares, do ritual das relações entre o rei e a rainha e todos aqueles que frequentam o paço, sobretudo o clero (Cap. I)

Ø  Diversas procissões, nomeadamente, a de penitência pela altura da Quaresma (Cap. III), a dos autos-de-fé (Cap. V e XXV); a do Corpo de Deus em Junho (Cap. XIII); que atestam a influência da religião na sociedade;

Ø  O baptizado da princesa Maria Bárbara no dia da Nossa Senhora do Ó (VII)

Ø  A tourada em Lisboa, no Terreiro do Paço (IX);

Ø  Os festejos da inauguração e da bênção da primeira pedra do convento de Mafra (XII);

Ø  As lições de música da infanta Maria Bárbara ministradas por Domenico Scarlatti (XVI)

Ø  A epidemia de cólera e febre-amarela que dizima o povo (XV)

Ø  O cortejo nupcial que retrata os casamentos da infanta Maria Bárbara e do príncipe D. José com o príncipe e infanta espanhóis (XXII);

Ø  Sagração, em 1730, do convento de Mafra, apesar de ainda não concluídas as obras (XXIV) …

          O narrador descreve locais onde se movem grandes ajuntamentos populares, na medida em que estes permitem evidenciar as disparidades sociais e a crueldade a que o povo estava sujeito.

          Pelo contrário, os ambientes das classes privilegiadas surgem em menor número e, não raro, são apresentados num tom irónico como forma de criticar aspectos políticos, económicos e religiosos de uma sociedade, onde uma minoria tem tudo e a maioria nada tem.

Espaço psicológico (vivências íntimas, pensamentos, sonhos, estados de espírito, memórias, reflexões… das personagens e que caracterizam o ambiente a elas associado):


Ø  O sonho – a rainha sonha diversas vezes com o cunhado, D. Francisco. Ao longo do romance, são descritos com alguma insistência os sonhos de diversas personagens, dando conta dos seus mais íntimos desejos, ansiedades e inquietações…

Ø  A imaginação – por exemplo, a peregrinação em busca de Baltasar, durante nove anos, Quantas vezes imaginou Blimunda que estando sentada na praça de uma vila, a pedir esmola, um homem se aproximaria… (Cap. XXV).

Ø  A memória – Quando Baltasar, por exemplo, relembra o momento em que perdeu a sua mão esquerda na guerra (VIII)

Ø  A reflexão – nomeadamente, a conversa entre a infanta D. Maria Bárbara e sua mãe durante o cortejo nupcial (XXII)


TEMPO

Tempo histórico (época ou período da História em que se desenrolam as sequências narrativas):

A acção passa-se no início do século XVIII (1711 – 1739).

Tempo da diegese (tempo durante o qual a acção se desenrola, segundo uma ordenação cronológica e em que surgem marcas objectivas da passagem das horas, dias, meses, anos…):

1711 – 1739. Ao longo do romance, as referências temporais são escassas e, muitas vezes, deduzidas. O crescimento e/ou envelhecimento das personagens também nos dá conta da passagem do tempo.

 

Ø  Chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje (I) – deduz-se que a acção tem início em 1711, pois o casamento real aconteceu dois anos antes, em 1709.

Ø  Apenas há seis anos  aconteceu, em 1705 (II) – confirma 1711 focado anteriormente;


Tempo do discurso
(modo como o narrador conta os acontecimentos, podendo elaborar o seu discurso segundo uma frequência, ordem e ritmo temporais diferentes):

Frequência temporal:

à Discurso singulativo – o narrador conta apenas uma vez o que aconteceu uma só vez.

à Discurso repetitivo – o narrador conta várias vezes o que aconteceu apenas uma vez.

à Discurso iterativo – o narrador conta uma vez o que aconteceu várias vezes

 
Ordem temporal:

à O narrador conta no presente acontecimentos já passados – analepseà anisocronia temporal

à O narrador antecipa acontecimentos futuros – prolepse à anisocronia temporal

à O narrador segue uma ordem cronológica dos eventos – ordem linear à isocronia temporal.


     No “Memorial do Convento” o narrador manipula o tempo a seu belo prazer mas segue uma ordem cronológica linear havendo, por vezes, algumas anisocronias, sobretudo prolepses (antecipação de acontecimentos futuros) que reflectem o seu afastamento temporal da intriga:

Ø  O número de filhos bastardos de D. João V (IX)

Ø  A morte do sobrinho de Baltasar (X)

Ø  A morte do infante D. Pedro (X)

Ø  A morte da mãe de Baltasar (XII)

Ø  A morte de Manuela Xavier e de Álvaro Diogo (XVII e XXIII, respetivamente)


          Da mesma forma, adoptando uma atitude distanciada e, não raro, irónica, o narrado tece comentários e comparações entre épocas históricas diferentes, que marcam a distância entre o tempo da diegese e o do discurso (prolepses).

Ø  Alusão à extinção dos autos-de-fé (V)

Ø  A referência às cores da bandeira portuguesa e à implantação da República (XII)

Ø  A menção à cor carmesim (XII)

Ø  A alusão à revolução do 25 de Abril (XIII)

Ø  A indicação do número de frades instalados no convento por altura das invasões francesas (XVII)

Ø  A referência ao cinema e aos aviões (XVII)

Ø  A alusão a Fernando Pessoa (XVIII)

          O distanciamento do narrador relativamente ao tempo da história é, ainda, visível quando este interpela directamente o narratário, esclarece termos que caíram em desuso e quando simula a voz de um cicerone (guia os visitantes do convento de Mafra (XIX)), detectando-se aqui a oposição entre dois tempos diferentes, com o intuito de corrigir a História através da lembrança daqueles homens verdadeiros e dos quais não há registo histórico oficial.

          É de salientar que o narrador tem consciência do desfasamento entre o tempo da história e o da escrita. Com isso pretende lembrar e enaltecer os homens/heróis que a História quase sempre esquece, através da oposição entre épocas distintas Vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz (XIX).

Há momentos em que o narrador recua no tempo diegético para contar acontecimentos situados num passado, mais ou menos distante, que explicam determinados aspectos da acção no presente (analepses):

 

Ø  Desejo antigo dos franciscanos terem um convento em Mafra (II)

Ø  A língua portuguesa ser familiar a Scarlatti há já alguns anos (XIV)

Ø  O que aconteceu ao cravo de Scarlatti que se encontrava na quinta do duque de Aveiro (XVI)

 

          No último capítulo há um salto de 9 anos no tempo da diegese em que o narrador sumaria em poucas páginas o que aconteceu durante este período de tempo. Nesta elipse temporal, o narrador cinge-se praticamente à peregrinação incessante de Blimunda e ao (re)encontro de Baltasar, 1739, desde o seu desaparecimento em 1730, omitindo o que de supérfluo para a acção se passou durante estes anos.


Tempo psicológico (tempo subjectivo, relacionado com as emoções, a problemática existencial das personagens, ou seja, a forma como estas sentem a passagem do tempo, vivendo momentos felizes e/ou infelizes):

No percurso até Espanha, Maria Bárbara vai observando o que a rodeia e, a partir daí, medita sobre vários assuntos, nomeadamente sobre o facto de nunca ter visto o convento erigido em honra do seu nascimento (XXII).

 

PERSONAGENS


          No romance, há dois tipos de personagens distintos: as históricas e as ficcionais. Saramago pretende evidenciar dicotomicamente dois tipos de vivências humanas: uma, em que os homens se servem dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos; outra, em que os homens se servem dos próprios meios para alcançar esses mesmos fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor, que pretende fazer a análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo.

          As personagens históricas pertencem a uma classe social privilegiada (nobreza/clero) que vive a seu belo prazer, menosprezando os interesses do povo:

 

Ø  D. João V – rei de Portugal. De carácter vaidoso, magnificente e megalómano pretende deixar uma obra que ateste a grandeza da sua riqueza e do seu poder, ainda que para tal se tenha de sacrificar o povo. É um “marido leviano”, cuja relação com a rainha se pauta, essencialmente, pelo cumprimento de deveres reais e conjugais. A caracterização do rei é feita predominantemente através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos – de modo indirecto.

Ø  D. Maria Ana Josefa – oriunda da Áustria, a rainha revela-se extremamente devota e submissa, cujo papel se resume basicamente a dar herdeiros ao rei…

Ø  A infanta D. Maria Bárbara – filha primogénita do casal real. Tem cara de lua cheia, é bexigosa e feia, mas boa rapariga, musical a quanto pode chegar uma princesa (XXII). Casa aos 17 anos com o infante D. Fernando de Espanha, pelo que não chega sequer a ver o convento erigido em honra do seu nascimento…

Ø  O infante D. Francisco – irmão de D. João V. é um homem sem escrúpulos que cobiça o trono e a esposa do rei, bem como se entretém a provar a sua boa pontaria de espingarda nos marinheiros que estão nos barcos ancorados no Tejo…

Ø  Domenico Scarlatti – músico italiano. É um homem de completa figura, rosto comprido, boca larga e firme, olhos afastados (XVI). Foi contratado para dar lições de música à infanta D. Maria Bárbara. Também ele partilha o segredo da construção da “passarola”, deslocando-se várias vezes à quinta do duqe de Aveiro onde toca cravo para gáudio dos presentes…

Ø  João Frederico Ludovice – arquitecto alemão, contratado para construir o convento de Mafra que sabe que uma vida, para ser bem sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por quem a viva entre os degraus do altar e os degraus do trono (XXI) …

Ø  O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – Figura que tem fundamento histórico. Imbuído de um espírito aberto e despreconceituoso, movimenta-se na corte e na academia de Coimbra. Acalenta o sonho de um dia voar, daí o seu projecto da “passarola”, apoiado por el-rei D. João V de quem é amigo. Mantém, do mesmo modo, laços de profunda amizade com Baltasar e Blimunda, que o ajudam na construção da “máquina voadora”, e com quem, segundo as suas palavras, forma uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo (XVI). Transtornado com a perseguição da Inquisição, refugia-se em Toledo, onde acaba por falecer… caracterização indirecta.


      Na caracterização das personagens pertencentes a este grupo, há, quase sempre, um tom depreciativo e irónico que marca o distanciamento temporal e, sobretudo, afetivo do narrador.

          Pelo contrário, a caracterização das personagens ficcionais, a quem o narrador confere maior destaque, reveste-se de um tom francamente positivo e valorativo, tanto mais que pertencem na sua maioria a um grupo social desfavorecido e, muitas vezes, explorado/oprimido pelas classes do poder.

          Os dois tipos de personagens, as histórias e as ficcionais – cuja caracterização é predominantemente indirecta e psicológica – convivem em simultâneo, sendo a intenção narrador, ao apresentar duas vivências antagónicas, desmascarar injustiças sociais quase sempre negligenciadas pela História ao longo do tempo.

 

Ø  Baltasar Mateus – de alcunha, o sete-sóis, esteve na guerra de sucessão de Espanha, durante quatro anos, da qual foi dispensado por ter perdido a mão esquerda em combate. De regresso, começa por trabalhar no açougue no Terreiro do Paço, em Lisboa. Num auto-de-fé conhece Blimunda, a quem se liga amorosa e espiritualmente. A convite do padre Bartolomeu Lourenço, ajuda a construir a “passarola”, sonho que passa também a ser seu. Mais tarde, trabalha nas obras do convento de Mafra, primeiro como servente e, depois, como boeiro. Após a morte do padre, zela pela preservação da “máquina voadora” e, um dia, por descuido, é levado ao acaso, acabando por ser queimado 9 anos depois num auto-de-fé pela Inquisição. Trata-se de um homem do povo, analfabeto e humilde, que aceita a vida tal como esta se lhe apresenta. Ao longo da acção, vai-se dando conta do seu envelhecimento (XIII)

Ø  Blimunda de Jesus – uma mulher do povo, a quem o padre Bartolomeu Lourenço, baptiza de “sete-Luas”. Vive um amor apaixonado, franco e leal com Baltasar. Tem o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das coisas, o que lhe permite recolher as duas mil “vontades” indispensável para a “passarola” voar. Os seus olhos são evidenciados, por diversas vezes, (V). Detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites, procura “o seu homem” durante nove anos, unindo-se ao mesmo numa comunhão espiritual ao resgatar a sua “vontade” quando finalmente o reencontra num auto-de-fé em que este está a ser queimado no fogo da Inquisição… O nome de Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao narrador, talvez pela musicalidade que ele encerra ou pela magia das suas três sílabas, símbolo da perfeição. Esta figura representa a força que permite ao povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.

Ø  Sebastiana Maria de Jesus – mãe de Blimunda, um quarto de cristã-nova condenada a ser açoitada em público e ao degredo por ter “visões e revelações” (V). Ao avistar a filha no meio da multidão que assiste à procissão dos sentenciados pelo Santo ofício, de quem também faz parte, interroga-se sobre a identidade do homem “tão alto, que está perto de Blimunda” …

Ø  Marta Maria – mãe de Baltasar, é quem recebe o “filho pródigo” e Blimunda em sua casa, quando estes vão pela primeira vez juntos a Mafra.

Ø  João Francisco ­ – pai de Baltasar (X). homem do povo cuja subsistência reside na agricultura…

Ø  Inês Antónia – irmã de Baltasar, mãe de dois filhos, que sofre a morte do rapaz mais novo, com pouco mais de dois anos…

Ø  Álvaro Diogo – homem do povo e antigo soldado (IV) com quem Baltasar trava amizade ao chegar a Lisboa…

Ø  Os trabalhadores do convento – personagem colectiva, cuja “força bruta” e esforço desmedido são explorados de forma desumana. De entre estes, distinguem-se, nomeadamente: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo…

 

          O povo em geral – massa anónima tantas vezes subestimada e esquecida pela História – é apresentado como o verdadeiro herói, na medida em que foi à custa do seu sacrifício, e muitas vezes da própria morte, que se tornou possível a edificação do megalómano convento.

          Saramago (tal como Luís de Sttau Monteiro fez em Felizmente há Luar!, se bem que em situações politicas diferentes) sentiu a necessidade de repensar os acontecimentos e as figuras à luz de uma nova realidade criada no presente e que tem implicações na construção de valores sociais futuros.

 

NARRADOR


          Em Memorial do Convento é maioritariamente heterodiegético, quanto à presença, e omnisciente, quanto à ciência/focalização. No que respeita à sua posição, não raro profere juízos de valor, opiniões, comentários e divagações pelo que, neste caso, é subjectivo.  

          Há, no entanto, momentos em que o narrador empresta a sua “voz” a diversas personagens, adoptando deste modo o seu ponto de vista (focalização interna): e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus… (V); e, eu, patriarca, debaixo dele… (XIII); E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e o resto… (XIII)


          O estatuto do narrador assume, por vezes, atitudes aparentemente contraditórias: por um lado, há uma tentativa de aproximação à época retratada não só através da reconstituição do ambiente vivido, mas também do vocabulário usado; e, por outro lado, há um distanciamento do narrador, perceptível no recurso a prolepses, à ironia e a uma actualização ao nível da linguagem. (por exemplo, a narração do cerimonial respeitante aos encontros sexuais entre o rei e a rainha (I), apesar de retratar o ritual próprio da época, reveste-se de extrema ironia, o que evidencia um narrador distanciado do tempo histórico apresentado.

          No que diz respeito a actualizações ao nível do vocabulário, o narrador não só utiliza termos usado num tempo posterior ao da diegese, como os que se prendem com a aviação; mas também procura explicitar conceitos que, na actualidade, sofreram alterações como é o caso da denominação das refeições: passou a manhã, foi a hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos (VIII).

          Trata-se, assim, de um narrador que se movimenta entre o passado, o presente e o futuro; detentor de um vasto conhecimento que lhe permite controlar a acção e as personagens.

          O narratário surge no interior da narrativa, como entidade fictícia, a quem o narrador se dirige, explícita ou implicitamente. É, portanto, o destinatário da mensagem do narrador.

          Ao longo do romance, há momentos em que transparece a ideia de que o narrador participa na acçãoJá passámos Pintéus, vamos no caminho… (XXII) – e outros em que o narrador envolve igualmente um tu, através do uso da primeira pessoa do plural que ora assume contornos de um eu nacional e/ou colectivo – nem parecemos aquele país civilizado… (X) – ora se trata claramente de uma interpelação a um narratário a quem dirige a sua mensagem – Blimunda não nos ouve, saiu já de casa (XXIV).


CLASSIFICAÇÃO LITERÁRIA DE Memorial do Convento
          Relativamente a este romance, o título - Memorial - sugere factos de que reza a História. Todavia, existem algumas dúvidas quanto à sua classificação. Atendendo à intemporalidade do narrador, que intervém frequentemente na história narrada, parece impossível classificar esta obra como romance histórico. Apesar disto, há na obra a reconstituição de um passado histórico, mas cheio de intromissões e considerações presentificadas. Além disso, a ficção marca aqui a sua presença, bem como a supremacia dada a aspectos que a História não realçou e tudo isto constitui factor de afastamento ao romance histórico.
          No fundo, Saramago conta o passado com os olhos postos no presente, evidenciando-se, deste modo, a subjectividade com que História é narrada. De qualquer modo, existem aproximações ao romance histórico, fundamentalmente na reconstituição de ambientes e de factos respeitantes à História, muito embora esta seja recriada pelo olhar crítico de Saramago que até lhe dá outros heróis, frequentemente aqueles que a verdade histórica esqueceu, colocando-os num plano ficcional.
          A preocupação com a realidade, evidenciada na obra, vai dar, também, ao romance um cariz social, fazendo-se crónica dos costumes da época, romance social, destacando-se gente humilde e oprimida, afirmando-se, deste modo, como romance de intervenção, ao remeter para uma época repressiva, mas ainda experienciada no século XX.
          Através do passado presentificado, o romance adquire intemporalidade, visível na repressão, nos desejos e comportamentos das personagens, os quais não se alteraram no momento da escrita.
Mas se uma época da História é evidenciada, os quadros que a reconstituem também caracterizam o ambiente histórico e, neste sentido, a designação de romance de espaço também se enquadra na obra.
A reconstituição de cenários que retratam Lisboa e outras localidades permite observar as preocupações com os factos históricos e com o modo de vida dos humildes, por parte de Saramago.
          Com efeito, “memorial” remete para algo respeitante à memória, para um escrito que relata factos memoráveis, neste caso relacionados com a construção do convento de Mafra.
          À reconstrução da História aliam-se outros aspectos que culminam numa reescrita da História, onde personagens normalmente por ela esquecidas vão ganhar relevo.
          O relato histórico que o narrador faz está semeado de comentários e de referências a acontecimentos do século XVIII que deverão servir de exemplo para a actualidade. Por isso, a História tem aqui um papel diversificado: aparece como fonte de energia que favorece a história ficcional de Baltasar e Blimunda, mas serve também de assunto quando se relatam momentos históricos concretos, como a construção do convento ou os casamentos reais.
          Realmente, parece ser possível afirmar que Memorial do Convento se aproxima do romance histórico, mas um pouco adulterado, uma vez que a História funciona como pretexto para tratar temas e situações conducentes a valores intemporais.
 
VISÃO CRÍTICA
 
          Tendo como pretexto a construção do convento de Mafra, Saramago, adoptando a perspectiva de um narrador distanciado do tempo da diegese, apresenta uma visão crítica da sociedade portuguesa da primeira metade do século XVIII. É neste sentido que Memorial do Convento transpõe a classificação de romance histórico, uma vez que não se trata de uma mera reconstituição de um acontecimento histórico, mas é antes um testemunho intemporal e universal do sofrimento de um povo sujeito à tirania de uma sociedade em que só a vontade de el-rei prevalecem o resto é nada (XXII).
          Logo desde o início do romance é visível o tom irónico e, até mesmo, sarcástico do narrador relativamente à hipotética esterilidade da rainha e à infidelidades do rei. Esta atitude irónica do narrador mantém-se ao longo da obra, denunciando o comportamento leviano do rei, a sua vaidade desmedida e as promessas megalómanas de que resulta o sofrimento extreo de homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam (XIX).
          O clero, que exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de um regime repressivo entre os seus seguidores e que constantemente quebra o voto de castidade, também não escapa ao olhar crítico e sarcástico do narrador. A actuação da Inquisição que, à luz da fé cristã, manipula os mais fracos é de igual modo criticada ao longo do romance, nomeadamente, através da apresentação de diversos autos-de-fé e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados.
          Assim, são sobretudo as personagens de estatuto social privilegiado o alvo da crítica do narrador que denuncia as injustiças sociais, a omnipotência dos poderosos e a exploração do povo – evidenciada nas miseráveis condições de trabalho dos operários do convento de Mafra; ao mesmo tempo que denota empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço elogia e enaltece.
          A crítica estende-se, ainda: à Justiça portuguesa que castiga os pobres e despenaliza os ricos, ao facto de se preterir os artífices e os produtos nacionais em defesa dos estrangeiros, bem como ao adultério e À corrupção generalizados.
          Em suma, Memorial do Convento constitui acima de tudo uma reflexão crítica – ao problematizar temas perfeitamente adaptáveis à época contemporânea do autor – conducente a uma releitura do passado e à correcção da visão que se tem da História.
 
SIMBOLOGIA
          Começando pelo nome das personagens principais, há a referir que em ambas (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas) é apresentada uma ideia de união, de complementaridade e de perfeição, traduzidas pela simbologia no número 7. Ambos os nomes representam, também, perfeição, totalidade e até magia, sugeridas pela extensão trissílaba (e aqui reside a simbologia do número 3, "revelador de uma ordem intelectual e espiritual traduzida na união do céu e da terra").
          Vários homens mutilados surgem na construção do convento, incluindo Baltasar. Baltasar, após ter perdido a mão esquerda num episódio bélico, empreende outras lutas: na construção da passarola e na colaboração na edificação do convento de Mafra. Simbolicamente, a perda de parte do seu lado esquerdo significou a amputação da sua dimensão mais nefasta, mais masculina, mais passada; ganhou, assim, uma dimensão mais espiritual, marcada pela perseverança, força, luta e sentido de futuro que sairá reforçada na associação com Blimunda. (cf. retrato traçado pelo padre Bartolomeu)
          A riqueza interior de Blimunda apresenta-se, simbolicamente, pela força do seu olhar, possuidor de um poder mágico.
          Metaforicamente, surgem as duas mil “vontades” (símbolo de todos aqueles que contribuem para o progresso do mundo) necessárias para realizar o sonho do padre Bartolomeu. São vontades (nuvens) estão carregadas de um carácter eufórico (positivo); contudo, de difícil acesso. Só uma personagem como Blimunda conseguiria interpenetrar neste mundo não material.
          Ainda no que concerne à simbologia dos números, o 7 não aparece só associado aos nomes de Baltasar e Blimunda, como também à data e à hora da sagração do convento, aos sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti, às sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à procura de Baltasar, às sete igrejas visitadas na Páscoa, aos sete bispos que baptizaram D. Maria Bárbara comparados a sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar mor.
          O número nove surge também a simbolizar insistência e determinação quando Blimunda procura o homem amado durante 9 anos. Este número encerra também simbolicamente a ideia de procura pois, o que realmente acontece a Blimunda após os 9 anos de busca é que reencontra finalmente Baltasar, não como um encontro físico, mas místico e completo.
 
ESTILO E LINGUAGEM DE JOSÉ SARAMAGO
Figuras de estilo recorrentes:
Ø  Metáfora à página 27 e 111
Ø  Ironia à pág. 11, 15-16, 153
          É de notar que, em determinados momentos, por exemplo, aquando da descrição do auto-de-fé ou das procissões, a visão crítica do narrador é acompanhada de uma ironia que perpassa todo o relato.
Ø  Hipálage à pág. 42
 
Recurso ao registo de língua familiar e popular, com sentido irónico e crítico ou como forma de tradução do estatuto social das personagens. Pág. 11, 38, 40.
 
Oposições sugeridas por vocabulários antónimosà pág. 27. (no exemplo enfatizam-se as oposições entre as classes sociais distintas: os ricos e os pobres)
 
Formas verbais
Ø  Utilização do gerúndio à pág. 50 (no exemplo, o gerúndio surge como expressão do movimento da multidão e serve a sequencialização da acção, sugerindo a sua duração)
Ø  Utilização do presente do indicativo – transporta o leitor para o tempo da narrativa à pág. 39
Ø  Utilização do modo imperativo – utilização do imperativo, por vezes, alia-se à ironia crítica, numa reminiscência da oratória barroca. à pág. 308
 
Construção frásica
Ø  Frases muito longas – surgem numa aproximação ao discurso oral ou como tradução do monólogo anterior e da celeridade do pensamento à pág. 131 e 94
Ø  Paralelismos de construção à pág 26
Ø  Utilização do polissíndeto à pág 94
Ø  Utilização do paralelimo de construção e do polissindeto à pág. 112-113
Ø  Enumeração à pág. 335
Ø  Ausência de sinais gráficos indicadores de diálogo – a fuga às regras gramaticais normativas tradicionais na utilização da pontuação confere ao texto fluidez rítmica, aproximando-o do discurso oral ou do ritmo do pensamento.
§  É, normalmente, a vírgula que separa as falas das personagens. Sempre que é necessário desambiguar o autor recorre ao ponto final.
§  Os pontos de exclamação e de interrogação são omissos, assim como qualquer referência do narrador a estes tipos de entoação, o que, contudo, não impede o leitor de os percepcionar.
Ø  Hibridismo de tipologias discursivas – o narrador utiliza os discursos directo, indirecto e indirecto livre, sem proceder às demarcações tradicionais ao nível gráfico (dois pontos seguidos de travessão) e lexical (verbos como declarar, perguntar, acrescentar, etc).
 
 
 

1 comentário:

  1. “Memorial do convento”
    O momento da acção a que o excerto abaixo se refere é no capitulo xlx; o transporte e lançamento da primeira pedra, onde o esforço dos homens é muito, onde o suor e o cansaço eram evidentes, era como uma “ espécie de nau da Índia com rodas”, nota-se neste excerto o quão é difícil o transporte desta pedra, fazendo uma comparação com um dado histórico da história de Portugal o quão difícil foi por mares nunca antes navegados chegar á Índia.
    Na obra do “ Memorial do Convento” de José Saramago, esta obra conta 2 histórias particulares e paralelas… a história de Portugal, no reinado do D. João v, e a construção do “ Convento de Mafra” e a bela história de amor entre Baltasar, Sete-sois e Blimunda, Sete- luas, e a construção da Passarola- “a máquina de voar”. José Saramago utiliza a ironia para criticar e ironizar as classes sociais mais ricas; José saramago escreveu este grandioso livro para engrandecer o povo, o esforço, a emoção ao construir o Convento de Mafra, e conta a historiada construção da passarola ate ao seu lançamento para dar-nos a ideia de que o homem pode tudo, com esforço e dedicação; com “vontades” os obstáculos são ultrapassados; a grande amizade também é muito favorável, pois esta ajuda, como viu com o Padre Bartolomeu Lourenço ao convidar Baltasar e Blimunda pra a construção da passarola. Ao ler este livro notei que o estilo como José saramago escreve é peculiar, é diferente dos outros, mas é muito interessante como uma pessoa do povo conseguiu ser um artesão da arte de escrever, e ganhar um premio Nobel da Literatura.

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