Imagem da peça Memorial do Convento de José Saramago, com adaptação dramatúrgica de Filomena Oliveira e Miguel Real
MEMORIAL DO CONVENTO, José Saramago
AÇÃO
A análise de Memorial do Convento permite constatar a existência de duas
narrativas simultâneas: uma de carácter histórico e outra ficcionada.
A acção
principal é a edificação do convento de Mafra – desejo e promessa de D.
João V e a acção secundária é a história de amor entre Blimunda Sete-Luas e
Baltasar Sete-Sóis; a construção da passarola (sonho de Bartolomeu de Gusmão).
Na
acção principal encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas de
acção que se articulam com a primeira.
1º linha de acção
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A do rei – D. João V
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Abrange
todas as personagens da família real e relaciona-se com a segunda linha de
acção, uma vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do
convento. Esta linha tem como espaço principal a corte e, depois, o convento,
na altura da sua inauguração, no dia do aniversário do rei.
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2º linha de acção
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A dos construtores do convento
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Esta
é a linha da acção principal da história, a par da quarta – a que respeita à construção
da passarola. Esta segunda linha de acção vai ganhando relevo e une a
primeira à terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício
dos homens, aqui representados por Baltasar e Blimunda, que ela se deve.
Glorificam-se aqui os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas
que também as vencem.
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3º linha de acção
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A de Baltasar e Blimunda
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Nesta
linha relata-se uma história de amor e o modo de vida dos portugueses.
Baltasar e Blimunda são os construtores da passarola; Baltasar é também,
depois, construtor do convento, constituindo-se como paradigma da força que
faz mover Portugal – a do povo.
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4º linha de acção
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A de Bartolomeu Lourenço
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Relaciona-se
com o sonho e o desejo de construir uma máquina voadora. Articula-se com a
primeira e segunda linhas de acção, porque o padre é mediador entre a
corte e o povo. Também se enquadra na terceira linha, dado que a
construção da passarola resulta da força das vontades que Blimunda tem de
recolher para que a passarola voe.
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Verifica-se a existência de um plano
ficcional que se cruza com a História, uma vez que a construção da passarola,
evento a que a História se refere, acaba por ser ficcionada quando se afirma
que se moverá pela força das “vontades” que Blimunda recolhe.
A construção da passarola é o fio
condutor de toda a narrativa pois consegue-se observar quase todos os passos, e
até partilhar do entusiasmo das personagens, enquanto que da construção do
convento só se sabe as fases da construção.
Parece, até, que só a partir do décimo sétimo capítulo é que a passarola cede lugar ao convento. Na realidade, é a construção da máquina que conduz a narrativa e é ela que materializa o sonho dos seus construtores e lhes vai permitir a fuga de um mundo dominado pela injustiça e pela prepotência.
Parece, até, que só a partir do décimo sétimo capítulo é que a passarola cede lugar ao convento. Na realidade, é a construção da máquina que conduz a narrativa e é ela que materializa o sonho dos seus construtores e lhes vai permitir a fuga de um mundo dominado pela injustiça e pela prepotência.
As sequências narrativas, que fazem
parte da acção, podem surgir articuladas de três maneiras diferentes:
à Encadeamento:
por exemplo, o desenrolar da relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, a
partir do momento em que se conhecem no auto-de-fé, onde a mãe de Blimunda é
condenada, até ao reencontro do casal no final da acção, na altura em que
Baltasar está a ser queimado na fogueira da Inquisição.
à Encaixe:
por exemplo, as histórias de vida que Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim
da Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-tempo e Baltasar Mateus contam
uns aos outros (Cap. XVIII), quando estes se encontram longe dos seus lares a
trabalhar na construção do convento.
à Alternância:
por exemplo, a história de Manuel Milho sobre uma rainha e um ermitão (Cap.
XIX) é contada por partes, à noite, dando lugar à narração de outros eventos.
ESPAÇO
Espaço físico (espaço real, onde os acontecimentos
ocorrem, confere verosimilhança à história narrada):
à Espaço geográfico – Lisboa e
Mafra são os espaços fulcrais, até porque é aqui que se movimentam as
personagens principais. Dentro destes espaços, destacam-se, nomeadamente:
- o Terreiro do Paço (local que retrata a vida na corte),
- o Rossio (onde se realiza, por exemplo, os autos-de-fé),
- S. Sebastião da Pedreira (localidade situada nos arredores de Lisboa, onde decorre a construção da “passarola”, na quinta do duque de Aveiro),
- a “ilha da Madeira” (vale onde os trabalhadores do convento se alojam).
Faz-se ainda referência :
- a Évora, Montemor, Pegões, Aldegalega (locais por onde Baltasar passa, depois da guerra, no seu percurso até chegar a Lisboa);
- à serra do Barregudo, ao Monte Junto, ao Monte Achique, a Pinheiro de Loures, a Pêro Pinheiro (onde os homens vão buscar a gigantesca pedra para o convento), a Cheleiros, a Torres Vedras, Leiria,
- à região do Algarve,
Alentejo e Entre-Douro-e-Minho, etc.
à Espaço interior – Palácio Real (Lisboa), a albegoaria
da quinta do duque de Aveiro (arredores de Lisboa), a casa dos pais de Baltasar
(Mafra) …
à Espaço exterior – ruas/praças,
o Terreiro do Paço, o Rossio, Remolares, S. Roque, o morro das Taipas,
Valverde, o vale da “ilha da Madeira”…
Espaço social (ambiente social vivido pelas
personagens): MAFRA e LISBOA
Ø
A
vida na corte, com a apresentação do séquito real, do vestuário das
personagens, das vénias protocolares, do ritual das relações entre o rei e a
rainha e todos aqueles que frequentam o paço, sobretudo o clero (Cap. I)
Ø
Diversas
procissões, nomeadamente, a de penitência pela altura da Quaresma (Cap. III), a
dos autos-de-fé (Cap. V e XXV); a do Corpo de Deus em Junho (Cap. XIII); que
atestam a influência da religião na sociedade;
Ø
O
baptizado da princesa Maria Bárbara no dia da Nossa Senhora do Ó (VII)
Ø
A
tourada em Lisboa, no Terreiro do Paço (IX);
Ø
Os
festejos da inauguração e da bênção da primeira pedra do convento de Mafra
(XII);
Ø
As
lições de música da infanta Maria Bárbara ministradas por Domenico Scarlatti (XVI)
Ø
A
epidemia de cólera e febre-amarela que dizima o povo (XV)
Ø
O
cortejo nupcial que retrata os casamentos da infanta Maria Bárbara e do
príncipe D. José com o príncipe e infanta espanhóis (XXII);
Ø
Sagração,
em 1730, do convento de Mafra, apesar de ainda não concluídas as obras (XXIV) …
O narrador descreve locais
onde se movem grandes ajuntamentos populares, na medida em que estes permitem
evidenciar as disparidades sociais e a crueldade a que o povo
estava sujeito.
Pelo contrário, os ambientes das
classes privilegiadas surgem em menor número e, não raro, são apresentados num
tom irónico como forma de criticar aspectos políticos, económicos e religiosos
de uma sociedade, onde uma minoria tem tudo e a maioria nada tem.
Espaço psicológico (vivências íntimas, pensamentos,
sonhos, estados de espírito, memórias, reflexões… das personagens e que
caracterizam o ambiente a elas associado):
Ø
O
sonho – a rainha sonha diversas vezes com o cunhado, D. Francisco. Ao
longo do romance, são descritos com alguma insistência os sonhos de diversas
personagens, dando conta dos seus mais íntimos desejos, ansiedades e inquietações…
Ø
A
imaginação – por exemplo, a peregrinação em busca de Baltasar, durante
nove anos, Quantas vezes imaginou
Blimunda que estando sentada na praça de uma vila, a pedir esmola, um homem se
aproximaria… (Cap. XXV).
Ø
A
memória – Quando Baltasar, por exemplo, relembra o momento em que perdeu
a sua mão esquerda na guerra (VIII)
Ø
A
reflexão – nomeadamente, a conversa entre a infanta D. Maria Bárbara e
sua mãe durante o cortejo nupcial (XXII)
TEMPO
Tempo histórico (época ou período da História em que
se desenrolam as sequências narrativas):
A
acção passa-se no início do século XVIII (1711 – 1739).
Tempo da diegese (tempo durante o qual a acção se
desenrola, segundo uma ordenação cronológica e em que surgem marcas objectivas
da passagem das horas, dias, meses, anos…):
1711
– 1739. Ao longo do romance, as referências temporais são escassas e, muitas
vezes, deduzidas. O crescimento e/ou envelhecimento das personagens também nos
dá conta da passagem do tempo.
Ø
Chegou há mais de dois anos
da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje (I) – deduz-se que a acção tem início
em 1711, pois o casamento real aconteceu dois anos antes, em 1709.
Ø
Apenas há seis anos aconteceu, em 1705 (II) – confirma 1711 focado anteriormente;
Tempo
do discurso
(modo
como o narrador conta os acontecimentos, podendo elaborar o seu discurso
segundo uma frequência, ordem e ritmo temporais diferentes):
Frequência temporal:
à Discurso singulativo – o narrador
conta apenas uma vez o que aconteceu uma só vez.
à Discurso repetitivo – o narrador
conta várias vezes o que aconteceu apenas uma vez.
à Discurso iterativo – o narrador conta
uma vez o que aconteceu várias vezes
Ordem temporal:
à O narrador conta no presente
acontecimentos já passados – analepseà anisocronia temporal
à O narrador antecipa acontecimentos
futuros – prolepse à anisocronia temporal
à O narrador segue uma ordem
cronológica dos eventos – ordem linear
à
isocronia temporal.
No
“Memorial do Convento” o narrador manipula o tempo a seu belo prazer mas segue
uma ordem cronológica linear havendo, por vezes, algumas anisocronias,
sobretudo prolepses (antecipação de
acontecimentos futuros) que reflectem o seu afastamento temporal da intriga:
Ø
O
número de filhos bastardos de D. João V (IX)
Ø
A
morte do sobrinho de Baltasar (X)
Ø
A
morte do infante D. Pedro (X)
Ø
A
morte da mãe de Baltasar (XII)
Ø
A
morte de Manuela Xavier e de Álvaro Diogo (XVII e XXIII, respetivamente)
Da mesma forma, adoptando uma atitude
distanciada e, não raro, irónica, o narrado tece comentários e comparações
entre épocas históricas diferentes, que marcam a distância entre o tempo da
diegese e o do discurso (prolepses).
Ø
Alusão
à extinção dos autos-de-fé (V)
Ø
A
referência às cores da bandeira portuguesa e à implantação da República (XII)
Ø
A
menção à cor carmesim (XII)
Ø
A
alusão à revolução do 25 de Abril (XIII)
Ø
A
indicação do número de frades instalados no convento por altura das invasões
francesas (XVII)
Ø
A
referência ao cinema e aos aviões (XVII)
Ø
A
alusão a Fernando Pessoa (XVIII)
O distanciamento do narrador
relativamente ao tempo da história é, ainda, visível quando este interpela
directamente o narratário, esclarece termos que caíram em desuso e quando simula
a voz de um cicerone (guia os visitantes do convento de Mafra (XIX)),
detectando-se aqui a oposição entre dois tempos diferentes, com o intuito de
corrigir a História através da lembrança daqueles homens verdadeiros e dos
quais não há registo histórico oficial.
É de salientar que o narrador tem
consciência do desfasamento entre o tempo da história e o da escrita. Com isso
pretende lembrar e enaltecer os homens/heróis que a História quase sempre
esquece, através da oposição entre épocas distintas Vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles
é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz (XIX).
Há
momentos em que o narrador recua no
tempo diegético para contar acontecimentos situados num passado, mais ou
menos distante, que explicam determinados aspectos da acção no presente (analepses):
Ø
Desejo
antigo dos franciscanos terem um convento em Mafra (II)
Ø
A
língua portuguesa ser familiar a Scarlatti há já alguns anos (XIV)
Ø
O
que aconteceu ao cravo de Scarlatti que se encontrava na quinta do duque de
Aveiro (XVI)
No último capítulo há um salto de 9
anos no tempo da diegese em que o narrador
sumaria em poucas páginas o que aconteceu durante este período de tempo.
Nesta elipse temporal, o narrador
cinge-se praticamente à peregrinação incessante de Blimunda e ao (re)encontro
de Baltasar, 1739, desde o seu desaparecimento em 1730, omitindo o que de
supérfluo para a acção se passou durante estes anos.
Tempo psicológico (tempo subjectivo, relacionado com as
emoções, a problemática existencial das personagens, ou seja, a forma como
estas sentem a passagem do tempo, vivendo momentos felizes e/ou infelizes):
No
percurso até Espanha, Maria Bárbara vai observando o que a rodeia e, a partir
daí, medita sobre vários assuntos, nomeadamente sobre o facto de nunca ter
visto o convento erigido em honra do seu nascimento (XXII).
PERSONAGENS
No romance, há dois tipos de
personagens distintos: as históricas e as ficcionais. Saramago pretende
evidenciar dicotomicamente dois tipos de vivências humanas: uma, em que os
homens se servem dos seus semelhantes para atingir determinados objectivos;
outra, em que os homens se servem dos próprios meios para alcançar esses mesmos
fins. Tal facto está ao serviço da intenção do autor, que pretende fazer a
análise das condições sociais, morais e económicas da corte e do povo.
As personagens históricas pertencem a uma classe social privilegiada
(nobreza/clero) que vive a seu belo prazer, menosprezando os interesses do
povo:
Ø
D. João V – rei de Portugal. De carácter
vaidoso, magnificente e megalómano pretende deixar uma obra que ateste a
grandeza da sua riqueza e do seu poder, ainda que para tal se tenha de
sacrificar o povo. É um “marido leviano”, cuja relação com a rainha se pauta,
essencialmente, pelo cumprimento de deveres
reais e conjugais. A caracterização do rei é feita predominantemente
através da descrição das suas acções e dos seus pensamentos – de modo
indirecto.
Ø
D. Maria Ana Josefa – oriunda da Áustria, a rainha
revela-se extremamente devota e submissa, cujo papel se resume basicamente a
dar herdeiros ao rei…
Ø
A infanta D. Maria Bárbara – filha primogénita do casal real.
Tem cara de lua cheia, é bexigosa e
feia, mas boa rapariga, musical a quanto
pode chegar uma princesa (XXII). Casa aos 17 anos com o infante D. Fernando
de Espanha, pelo que não chega sequer a ver o convento erigido em honra do seu
nascimento…
Ø
O infante D. Francisco
– irmão de D. João V. é um homem sem escrúpulos que cobiça o trono e a esposa
do rei, bem como se entretém a provar a sua boa pontaria de espingarda nos
marinheiros que estão nos barcos ancorados no Tejo…
Ø
Domenico Scarlatti – músico italiano. É um homem de completa figura, rosto comprido,
boca larga e firme, olhos afastados (XVI). Foi contratado para dar lições
de música à infanta D. Maria Bárbara. Também ele partilha o segredo da construção
da “passarola”, deslocando-se várias vezes à quinta do duqe de Aveiro onde toca
cravo para gáudio dos presentes…
Ø
João Frederico Ludovice – arquitecto alemão, contratado para
construir o convento de Mafra que sabe
que uma vida, para ser bem sucedida, haverá de ser conciliadora, sobretudo por
quem a viva entre os degraus do altar e os degraus do trono (XXI) …
Ø
O padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão – Figura que tem fundamento histórico.
Imbuído de um espírito aberto e despreconceituoso, movimenta-se na corte e na
academia de Coimbra. Acalenta o sonho de um dia voar, daí o seu projecto da
“passarola”, apoiado por el-rei D.
João V de quem é amigo. Mantém, do mesmo modo, laços de profunda amizade com
Baltasar e Blimunda, que o ajudam na construção da “máquina voadora”, e com
quem, segundo as suas palavras, forma uma
trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito Santo (XVI). Transtornado
com a perseguição da Inquisição, refugia-se em Toledo, onde acaba por falecer…
caracterização indirecta.
Na caracterização das
personagens pertencentes a este grupo, há, quase sempre, um tom depreciativo e irónico que marca o distanciamento
temporal e, sobretudo, afetivo do narrador.
Pelo contrário, a caracterização das personagens ficcionais, a quem o
narrador confere maior destaque, reveste-se de um tom francamente positivo e valorativo, tanto mais que pertencem na
sua maioria a um grupo social desfavorecido e, muitas vezes, explorado/oprimido
pelas classes do poder.
Os dois tipos de personagens, as
histórias e as ficcionais – cuja caracterização
é predominantemente indirecta e psicológica
– convivem em simultâneo, sendo a intenção narrador, ao apresentar duas
vivências antagónicas, desmascarar injustiças sociais quase sempre
negligenciadas pela História ao longo do tempo.
Ø
Baltasar Mateus – de alcunha, o sete-sóis, esteve na
guerra de sucessão de Espanha, durante quatro anos, da qual foi dispensado por
ter perdido a mão esquerda em combate. De regresso, começa por trabalhar no
açougue no Terreiro do Paço, em Lisboa. Num auto-de-fé conhece Blimunda, a quem
se liga amorosa e espiritualmente. A convite do padre Bartolomeu Lourenço,
ajuda a construir a “passarola”, sonho que passa também a ser seu. Mais tarde,
trabalha nas obras do convento de Mafra, primeiro como servente e, depois, como
boeiro. Após a morte do padre, zela pela preservação da “máquina voadora” e, um
dia, por descuido, é levado ao acaso, acabando por ser queimado 9 anos depois
num auto-de-fé pela Inquisição. Trata-se de um homem do povo, analfabeto e
humilde, que aceita a vida tal como esta se lhe apresenta. Ao longo da acção,
vai-se dando conta do seu envelhecimento (XIII)
Ø
Blimunda de Jesus – uma mulher do povo, a quem o padre
Bartolomeu Lourenço, baptiza de “sete-Luas”. Vive um amor apaixonado, franco e
leal com Baltasar. Tem o dom de, em jejum, ver o interior das pessoas e das
coisas, o que lhe permite recolher as duas mil “vontades” indispensável para a
“passarola” voar. Os seus olhos são evidenciados, por diversas vezes, (V).
Detentora de grande densidade psicológica e de uma perseverança sem limites,
procura “o seu homem” durante nove anos, unindo-se ao mesmo numa comunhão
espiritual ao resgatar a sua “vontade” quando finalmente o reencontra num
auto-de-fé em que este está a ser queimado no fogo da Inquisição… O nome de
Blimunda, estranho e raro tal como a personagem que o veste, teria surgido ao
narrador, talvez pela musicalidade que ele encerra ou pela magia das suas três
sílabas, símbolo da perfeição. Esta figura representa a força que permite ao
povo a sua sobrevivência, assim como contestar o poder e resistir.
Ø
Sebastiana Maria de Jesus – mãe de Blimunda, um quarto de cristã-nova condenada a
ser açoitada em público e ao degredo por ter “visões e revelações” (V). Ao
avistar a filha no meio da multidão que assiste à procissão dos sentenciados
pelo Santo ofício, de quem também faz parte, interroga-se sobre a identidade do
homem “tão alto, que está perto de Blimunda” …
Ø
Marta Maria – mãe de Baltasar, é quem recebe o
“filho pródigo” e Blimunda em sua casa, quando estes vão pela primeira vez
juntos a Mafra.
Ø
João Francisco – pai de Baltasar (X). homem do povo
cuja subsistência reside na agricultura…
Ø
Inês Antónia – irmã de Baltasar, mãe de dois
filhos, que sofre a morte do rapaz mais novo, com pouco mais de dois anos…
Ø
Álvaro Diogo – homem do povo e antigo soldado (IV)
com quem Baltasar trava amizade ao chegar a Lisboa…
Ø
Os trabalhadores do convento – personagem colectiva, cuja “força
bruta” e esforço desmedido são explorados de forma desumana. De entre estes,
distinguem-se, nomeadamente: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim da
Rocha, Manuel Milho, João Anes, Julião Mau-Tempo…
O
povo em geral – massa anónima tantas vezes subestimada e esquecida pela
História – é apresentado como o verdadeiro
herói, na medida em que foi à custa do seu sacrifício, e muitas vezes da
própria morte, que se tornou possível a edificação do megalómano convento.
Saramago (tal como Luís de Sttau
Monteiro fez em Felizmente há Luar!,
se bem que em situações politicas diferentes) sentiu a necessidade de repensar
os acontecimentos e as figuras à luz de uma nova realidade criada no presente e
que tem implicações na construção de valores sociais futuros.
NARRADOR
Em Memorial
do Convento é maioritariamente heterodiegético,
quanto à presença, e omnisciente,
quanto à ciência/focalização. No que respeita à sua posição, não raro profere
juízos de valor, opiniões, comentários e divagações pelo que, neste caso, é subjectivo.
Há, no entanto, momentos em que o narrador empresta a sua “voz” a diversas personagens, adoptando deste modo o
seu ponto de vista (focalização interna): e
esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus… (V); e, eu, patriarca, debaixo dele… (XIII); E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e o resto… (XIII)
O estatuto do narrador assume, por
vezes, atitudes aparentemente contraditórias: por um lado, há uma tentativa de aproximação à época retratada
não só através da reconstituição do ambiente vivido, mas também do vocabulário
usado; e, por outro lado, há um distanciamento
do narrador, perceptível no recurso a prolepses, à ironia e a uma
actualização ao nível da linguagem. (por exemplo, a narração do cerimonial
respeitante aos encontros sexuais entre o rei e a rainha (I), apesar de
retratar o ritual próprio da época, reveste-se de extrema ironia, o que
evidencia um narrador distanciado do tempo histórico apresentado.
No que diz respeito a actualizações ao
nível do vocabulário, o narrador não só utiliza termos usado num tempo posterior ao da diegese, como os que se
prendem com a aviação; mas também procura explicitar conceitos que, na actualidade,
sofreram alterações como é o caso da denominação das refeições: passou a manhã, foi a hora de jantar, que é
este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos (VIII).
Trata-se, assim, de um narrador que se
movimenta entre o passado, o presente e o futuro; detentor de um vasto
conhecimento que lhe permite controlar a acção e as personagens.
O narratário surge no interior da
narrativa, como entidade fictícia, a quem o narrador se dirige, explícita ou
implicitamente. É, portanto, o destinatário da mensagem do narrador.
Ao longo do romance, há momentos em
que transparece a ideia de que o
narrador participa na acção – Já
passámos Pintéus, vamos no caminho… (XXII) – e outros em que o narrador envolve igualmente um tu, através do uso da primeira pessoa
do plural que ora assume contornos de um eu nacional e/ou colectivo – nem parecemos aquele país civilizado…
(X) – ora se trata claramente de uma interpelação a um narratário a quem dirige
a sua mensagem – Blimunda não nos ouve,
saiu já de casa (XXIV).
CLASSIFICAÇÃO
LITERÁRIA DE Memorial do Convento
Relativamente a este romance, o título
- Memorial - sugere factos de que reza a História. Todavia, existem algumas
dúvidas quanto à sua classificação. Atendendo à intemporalidade do narrador, que intervém frequentemente na
história narrada, parece impossível classificar esta obra como romance
histórico. Apesar disto, há na obra a reconstituição de um passado histórico,
mas cheio de intromissões e considerações presentificadas. Além disso, a ficção
marca aqui a sua presença, bem como a supremacia dada a aspectos que a História
não realçou e tudo isto constitui factor de afastamento ao romance histórico.
No fundo, Saramago conta o passado
com os olhos postos no presente, evidenciando-se, deste modo, a
subjectividade com que História é narrada. De qualquer modo, existem
aproximações ao romance histórico,
fundamentalmente na reconstituição de ambientes e de factos respeitantes à
História, muito embora esta seja recriada pelo olhar crítico de Saramago que
até lhe dá outros heróis, frequentemente aqueles que a verdade histórica
esqueceu, colocando-os num plano ficcional.
A preocupação com a realidade,
evidenciada na obra, vai dar, também, ao romance um cariz social, fazendo-se crónica dos costumes da época, romance social, destacando-se gente
humilde e oprimida, afirmando-se, deste modo, como romance de intervenção, ao remeter para uma época repressiva, mas
ainda experienciada no século XX.
Através do passado presentificado, o
romance adquire intemporalidade, visível na repressão, nos desejos e
comportamentos das personagens, os quais não se alteraram no momento da
escrita.
Mas
se uma época da História é evidenciada, os quadros que a reconstituem também
caracterizam o ambiente histórico e, neste sentido, a designação de romance de espaço também se enquadra na
obra.
A
reconstituição de cenários que retratam Lisboa e outras localidades permite
observar as preocupações com os factos históricos e com o modo de vida dos
humildes, por parte de Saramago.
Com efeito, “memorial” remete para
algo respeitante à memória, para um escrito que relata factos memoráveis, neste
caso relacionados com a construção do convento de Mafra.
À reconstrução da História aliam-se
outros aspectos que culminam numa reescrita da História, onde personagens
normalmente por ela esquecidas vão ganhar relevo.
O relato histórico que o narrador faz
está semeado de comentários e de referências a acontecimentos do século XVIII
que deverão servir de exemplo para a actualidade. Por isso, a História tem aqui
um papel diversificado: aparece como fonte de energia que favorece a história
ficcional de Baltasar e Blimunda, mas serve também de assunto quando se relatam
momentos históricos concretos, como a construção do convento ou os casamentos
reais.
Realmente, parece ser possível afirmar
que Memorial do Convento se aproxima
do romance histórico, mas um pouco adulterado, uma vez que a História funciona
como pretexto para tratar temas e situações conducentes a valores intemporais.
VISÃO CRÍTICA
Tendo como pretexto a construção do
convento de Mafra, Saramago, adoptando a perspectiva de um narrador distanciado
do tempo da diegese, apresenta uma visão crítica da sociedade portuguesa da
primeira metade do século XVIII. É neste sentido que Memorial do Convento transpõe
a classificação de romance histórico, uma vez que não se trata de uma mera
reconstituição de um acontecimento histórico, mas é antes um testemunho
intemporal e universal do sofrimento de um povo sujeito à tirania de uma sociedade
em que só a vontade de el-rei prevalecem
o resto é nada (XXII).
Logo desde o início do romance é
visível o tom irónico e, até mesmo, sarcástico do narrador relativamente à
hipotética esterilidade da rainha e à infidelidades do rei. Esta atitude irónica
do narrador mantém-se ao longo da obra, denunciando o comportamento leviano do
rei, a sua vaidade desmedida e as promessas megalómanas de que resulta o
sofrimento extreo de homens que não
fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam
(XIX).
O clero,
que exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de um
regime repressivo entre os seus seguidores e que constantemente quebra o voto
de castidade, também não escapa ao olhar crítico e sarcástico do narrador. A actuação
da Inquisição que, à luz da fé cristã, manipula os mais fracos é de igual modo
criticada ao longo do romance, nomeadamente, através da apresentação de
diversos autos-de-fé e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras
onde se queimaram os condenados.
Assim, são sobretudo as personagens de estatuto social privilegiado
o alvo da crítica do narrador
que denuncia as injustiças sociais, a omnipotência dos poderosos e a exploração
do povo – evidenciada nas miseráveis condições de trabalho dos operários do
convento de Mafra; ao mesmo tempo que denota empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço elogia e
enaltece.
A crítica
estende-se, ainda: à Justiça portuguesa
que castiga os pobres e despenaliza os ricos, ao facto de se preterir os artífices
e os produtos nacionais em defesa dos
estrangeiros, bem como ao adultério
e À corrupção generalizados.
Em suma, Memorial do Convento constitui acima de tudo uma reflexão crítica – ao problematizar
temas perfeitamente adaptáveis à época contemporânea do autor – conducente a
uma releitura do passado e à
correcção da visão que se tem da História.
SIMBOLOGIA
Começando pelo nome das personagens
principais, há a referir que em ambas (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas)
é apresentada uma ideia de união, de complementaridade e de perfeição,
traduzidas pela simbologia no número 7. Ambos os nomes representam, também,
perfeição, totalidade e até magia, sugeridas pela extensão trissílaba (e aqui
reside a simbologia do número 3, "revelador de uma ordem intelectual e
espiritual traduzida na união do céu e da terra").
Vários homens mutilados surgem na construção
do convento, incluindo Baltasar. Baltasar, após ter perdido a mão esquerda num episódio bélico,
empreende outras lutas: na construção da passarola e na colaboração na
edificação do convento de Mafra. Simbolicamente, a perda de parte do seu lado
esquerdo significou a amputação da sua dimensão mais nefasta, mais masculina,
mais passada; ganhou, assim, uma dimensão mais espiritual, marcada pela
perseverança, força, luta e sentido de futuro que sairá reforçada na associação
com Blimunda. (cf. retrato traçado pelo padre Bartolomeu)
A riqueza interior de Blimunda apresenta-se,
simbolicamente, pela força do seu olhar, possuidor de um poder mágico.
Metaforicamente, surgem as duas mil
“vontades” (símbolo de todos aqueles que contribuem para o progresso do mundo)
necessárias para realizar o sonho do padre Bartolomeu. São vontades (nuvens)
estão carregadas de um carácter eufórico (positivo); contudo, de difícil
acesso. Só uma personagem como Blimunda conseguiria interpenetrar neste mundo
não material.
Ainda no que concerne à simbologia dos
números, o 7 não aparece só associado aos nomes de Baltasar e Blimunda, como
também à data e à hora da sagração do convento, aos sete anos vividos em
Portugal pelo músico Scarlatti, às sete vezes que Blimunda passa por Lisboa à
procura de Baltasar, às sete igrejas visitadas na Páscoa, aos sete bispos que
baptizaram D. Maria Bárbara comparados a sete sóis de ouro e prata nos degraus
do altar mor.
O número nove surge também a
simbolizar insistência e determinação quando Blimunda procura o homem amado
durante 9 anos. Este número encerra também simbolicamente a ideia de procura
pois, o que realmente acontece a Blimunda após os 9 anos de busca é que
reencontra finalmente Baltasar, não como um encontro físico, mas místico e
completo.
ESTILO E
LINGUAGEM DE JOSÉ SARAMAGO
Figuras
de estilo recorrentes:
Ø
Metáfora
à
página 27 e 111
Ø
Ironia
à pág.
11, 15-16, 153
É de notar que, em determinados
momentos, por exemplo, aquando da descrição do auto-de-fé ou das procissões, a
visão crítica do narrador é acompanhada de uma ironia que perpassa todo o relato.
Ø
Hipálage
à pág.
42
Recurso
ao registo de língua familiar e popular, com sentido irónico e crítico ou como
forma de tradução do estatuto social das personagens. Pág. 11, 38, 40.
Oposições sugeridas por vocabulários antónimosà pág. 27. (no exemplo enfatizam-se as
oposições entre as classes sociais distintas: os ricos e os pobres)
Formas verbais
Ø
Utilização
do gerúndio à
pág. 50 (no exemplo, o gerúndio surge como expressão do movimento da multidão e
serve a sequencialização da acção, sugerindo a sua duração)
Ø
Utilização
do presente do indicativo – transporta o leitor para o tempo da narrativa à pág. 39
Ø
Utilização
do modo imperativo – utilização do imperativo, por vezes, alia-se à ironia
crítica, numa reminiscência da oratória barroca. à pág. 308
Construção frásica
Ø
Frases
muito longas – surgem numa aproximação ao discurso oral ou como tradução do
monólogo anterior e da celeridade do pensamento à pág. 131 e 94
Ø
Paralelismos
de construção à
pág 26
Ø
Utilização
do polissíndeto à
pág 94
Ø
Utilização
do paralelimo de construção e do polissindeto à pág. 112-113
Ø
Enumeração
à pág.
335
Ø
Ausência de sinais gráficos
indicadores de diálogo
– a fuga às regras gramaticais normativas tradicionais na utilização da
pontuação confere ao texto fluidez rítmica, aproximando-o do discurso oral ou
do ritmo do pensamento.
§
É,
normalmente, a vírgula que separa as falas das personagens. Sempre que é necessário desambiguar o autor recorre ao ponto final.
§
Os
pontos de exclamação e de interrogação são omissos, assim como qualquer
referência do narrador a estes tipos de entoação, o que, contudo, não impede o
leitor de os percepcionar.
Ø
Hibridismo de tipologias discursivas – o narrador utiliza os discursos
directo, indirecto e indirecto livre, sem proceder às demarcações tradicionais
ao nível gráfico (dois pontos seguidos de travessão) e lexical (verbos como declarar,
perguntar, acrescentar, etc).
“Memorial do convento”
ResponderEliminarO momento da acção a que o excerto abaixo se refere é no capitulo xlx; o transporte e lançamento da primeira pedra, onde o esforço dos homens é muito, onde o suor e o cansaço eram evidentes, era como uma “ espécie de nau da Índia com rodas”, nota-se neste excerto o quão é difícil o transporte desta pedra, fazendo uma comparação com um dado histórico da história de Portugal o quão difícil foi por mares nunca antes navegados chegar á Índia.
Na obra do “ Memorial do Convento” de José Saramago, esta obra conta 2 histórias particulares e paralelas… a história de Portugal, no reinado do D. João v, e a construção do “ Convento de Mafra” e a bela história de amor entre Baltasar, Sete-sois e Blimunda, Sete- luas, e a construção da Passarola- “a máquina de voar”. José Saramago utiliza a ironia para criticar e ironizar as classes sociais mais ricas; José saramago escreveu este grandioso livro para engrandecer o povo, o esforço, a emoção ao construir o Convento de Mafra, e conta a historiada construção da passarola ate ao seu lançamento para dar-nos a ideia de que o homem pode tudo, com esforço e dedicação; com “vontades” os obstáculos são ultrapassados; a grande amizade também é muito favorável, pois esta ajuda, como viu com o Padre Bartolomeu Lourenço ao convidar Baltasar e Blimunda pra a construção da passarola. Ao ler este livro notei que o estilo como José saramago escreve é peculiar, é diferente dos outros, mas é muito interessante como uma pessoa do povo conseguiu ser um artesão da arte de escrever, e ganhar um premio Nobel da Literatura.